Friday, April 15, 2011

A sabedoria da viúva apaixonada

Acredito na sabedoria das viúvas apaixonadas. Daquelas que sepultam seus mortos em seus ventres e os trazem de volta à vida através de suas palavras, olhares, cantares... Eu conheci uma dessas viúvas numa noite de inverno. Ela cantou, declamou e alegrou minha noite no Madison Square Garden. Era o Rock and Roll Hall of Fame e a rainha do Punk não podia faltar. E esse foi o primeiro encontro de muitos outros que aconteceram... Sempre marcados por gritos, tambor, dança, dança, dança, dança!

Seu nome, Patti Smith e seus mortos, os conheci, através da sua música, poesia, literatura e fotografia. São eles: Arthur Rimbaud, Robert Mapplethorpe e Fred Sonic Smith. Esses mortos tinham um ponto comum, a generosidade. Eles se entregaram à vida, à arte e nos deram beleza, alegria, poesia e magia.


Patti era apaixonada por Rimbaud, morto em 1891. Ele foi o primeiro poeta moderno da literatura francesa, dos 17 aos 21 anos de idade criou uma prática poética inteiramente única, nunca vista até então. Rimbaud viveu um ardente caso de amor com o poeta simbolista Paul Verlaine e residiu brevemente em sua casa em Paris. Verlaine era casado, mas apaixonou-se loucamente pelo então adolescente Rimbaud, o enfant terrible da literatura francesa.  O caso amoroso os levou a Londres em setembro de 1872, Verlaine abandonando sua esposa e seu filho pequeno. Como fruto desse amor, Rimbaud nos deixou poesias únicas, originalissimas para a época.  Pérolas, maravilhas como Uma Estação no Inferno, considerada pioneira nas instâncias do simbolismo moderno, drôle de ménage (farsa doméstica) sobre sua vida com Verlaine, seu frère pitoyable (lamentável irmão) e a vierge folle (virgem louca). Também não podemos deixar de mencionar Illuminations.


Essa paixão aproximou Patti de um menino que ela conheceu no verão do amor (1967), Robert Mapplethorpe. Eles tinham então 20 anos e viveram um romance moderno, na cidade que não dorme, Nova Iorque. Patti e Robert ficaram juntos de 1967 a 1974. Foram anos difíceis, com pouca grana,  mas tinha a arte, a música, a poesia de Rimbaud e uma Nova Iorque em ebulição cultural. Mas o inesperado acontece. E tudo muda e não foi diferente nessa história. Nos anos 70 Mapplethorpe começou a fazer michê com seu amigo Jim Carrol para financiar o vício em heroina e se descobriu gostando mais do que imaginava de sexo com outros homens. E numa das festas que Robert costumava frequentar em Nova Iorque, ele acabou conhecendo seu amante e futuro companheiro, o charmoso colecionador de arte Sam Wagstaff, que alavancou e financiou sua carreira. A vida de Mapplethorpe mudou radicalmente com o suporte que Sam lhe proporcionou. E Robert liberou Wagstaff do armario que ele escondia sua sexualidade. A amizade entre Patti e Robert persistiu e colaboraram em muitos trabalhos nos anos seguintes.



Robert financiou a gravação do primeiro single da Patti Smith, Piss Factory/Hey Joe, em 1974. Em 1975 foi lançado o primeiro álbum de Smith, Horses, produzido em meio a certa tensão com John Cale, ex-Velvet Underground. As palavras de abertura proferidas por Smith nesse disco são umas das mais famosas na história do rock: "Jesus died for somebody's sins…but not mine". A foto da capa, tirada por Mapplethorpe, se tornou uma imagem clássica do rock. Por obra do destino, Patti teve um acidente sério que a deixou afastada de suas atividades artisticas. Período que pôde reavaliar sua vida. No final dos 70 ela lançou  Easter, com o hit Because the night. Pouco tempo depois, conheceu Fred "Sonic" Smith, ex-guitarrista da lendária banda de Detroit, MC5 que adorava poesia tanto quanto ela. Os dois se casaram e mudaram para Detroit. Tiveram dois filhos e uma vida calma, tranquila, longe dos holofotes.

Durante esse mesmo periodo Robert Mapplethorpe desenvolveu um grande interesse pela cena Sado Masoquista novaiorquina. O resultado dessa curiosidade foram trabalhos fotográficos únicos e marcados pela maestria da técnica e do seu olhar moderno. Robert em entrevista a ARTnews em 1988 mencionou, "Eu não gosto particularmente da palavra chocante. Eu busco o inesperado. Eu busco por coisas que que nunca tinha visto antes… E eu tive a oportunidade de tirar essas fotos. Eu me senti obrigado em dividí-las com o público". A carreira de Mapplethorpe continuou a florescer. Em 1986, ele descobriu que tinha contraído AIDS, mas isso não lhe impediu de continuar criando e trazendo sua arte para nossas vidas. Em seu leito de morte, Patti lhe prometeu contar suas histórias e quem era o verdadeiro Robert. Ela cumpriu a promessa em Janeiro de 2010 quando lançou Só Garotos (Just Kids).

Robert deixou sua fortuna para a  Robert Mapplethorpe Foundation , que tem por objetivo promover a arte fotográfica, e pesquisa para luta contra a AIDS e HIV. Sua generosidade ajuda outros artistas e toda uma comunidade.


Robert  morreu em Março de 1989, dois anos depois do falecimento de Sam. Cinco anos após, Fred, marido de Patti, sofreu um ataque cardíaco e faleceu. E após a perda do marido, veio a morte inesperada de seu querido irmão Todd. Após tantas perdas, Patti ficou abalada e foi encorajada por John Cale e Allen Ginsberg a procurar ajuda psiquiátrica. Em 1995 ela finalmente retorna a sua cidade, Nova Iorque, que ela tão bem define nos versos: “New York is the thing that seduced me. New York is the thing that formed me. New York is the thing that deformed me. New York is the thing that perverted me. New York is the thing that converted me. And New York is the thing that I love too.”

Mas a viúva sepultou seus mortos no seu ventre. Eles cresceram e precisavam sair, pois seu  corpo franzino não podia mais aguentá-los dentro de si. Mas o mundo de fora também tem o seu ‘dentro’ e havia muitas coisas a serem ditas. Com a ajuda de seus amigos Michael Stipe (R.E.M) e Ginsberg, Patti voltou a cena em 1995. Esse mundo que Patti nos divide hoje também é íntimo, pessoal, único e extremamente amoroso. E os deuses agradecem tamanha generosidade.

SONHO COM RIMBAUD
sou uma viúva. pode ser em chalerville pode ser
em qualquer lugar. ele caminha atrás da charrua. as
campinas. o jovem arthur se esconde pela fazenda
(roche?). o gerador o poço artesiano. atira cacos de vidro
verde aliás lascas de cristal. acerta meu olho.
estou no andar de cima. no quarto fazendo um curativo.
ele entra. se aproxima da cama. suas faces coradas.
arrogante & mãos enormes. sexy como o inferno. que
aconteceu ele pergunta se fazendo de inocente. inocente
demais. tiro a bandagem. mostro meu olho uma nojeira
sangrenta: um sonho de edgar allan poe. ele se assusta.
atiro à queima-roupa. alguém fez isto. você. ele cai a
meus pés. chora em meu colo. toco seu cabelo, mas
queimo os dedos. densa raposa de fogo. cabelo dourado
macio. aquela inconfundível tonalidade ruiva. rubedo.
espanto vermelho. cabelo do Único.
cristo eu o quero. imundo filho da puta. ele lambe minha
mão. mantenho a calma. vai depressa tua mãe te espera.
ele levanta. está indo embora. mas não sem antes me
olhar com aqueles seus frios olhos azuis de assassino. ele
hesita é meu. estamos na cama. levo uma faca suave à sua
garganta. deixo cair. nos agarramos. devoro seu escalpo.
piolhos do tamanho de dedos de criança.
o caviar do seu crânio.
arthur arthur. estamos em aden, abissínia. fodendo & fumando. nos beijamos. mas é mais que isso. blues.
charco azulado. mancha à tona da lagoa. percepções
ampliadas, alma vital. baía cristalina. explosão de bolas
de vidro coloridas. rasgadura de tecidos de tenda árabe.
se abrindo, aberta como uma caverna, aberta ao máximo.
rendição total.
Patti Smith, tradução: Rubens Zárate

Saturday, April 9, 2011

Nada é o que parece


O nosso encontro já estava marcado, vida após vida. Dizem que quando você encontra seu mestre e ele aceita te ensinar o caminho do meio, ele nunca mais desiste de você, e vida após vida ele te encontra, seja quando for, seja onde estiver. Comigo foi assim...
Era o inverno de 2010, muito frio em Nova Iorque. Eu andava inquieto, irritado com a baixa temperatura na cidade, insatisfeito com a minha vida, meio de saco cheio. Preciso fazer algo a respeito, pensava. Resolvi começar a praticar meditação.
Comecei a frequentar as aulas semanais com Sharon Salzberg no House of Tibet. Um mundo novo se abriu. Comprei livros sobre budismo, descobri que Dalai Lama estaria conduzindo um curso no Radio City Music Hall em Maio, e através das aulas de meditação pude ver que a minha mente era o verdadeiro samba do criolo doido. Mil pensamentos se formavam o tempo todo e eu os seguia, esses pensamentos geravam sentimentos e outros pensamentos. A mente não se aquietava. Não era à toa que me sentia esgotado... Com o tempo, aprendi a ver como se formavam e desintegravam os pensamentos. E que eles não tinham qualquer solidez, substância. Seguia as instruções da Sharon, quando os pensamentos apareciam eu os observava, mas evitava seguí-los. Aí a mágica acontecia. Eles desapareciam e não demorava muito para outros aparecerem. Não julgue ou condene seus pensamentos, dizia Sharon. Apenas observe, calmamente. Santo remédio esse de olhar sem julgar!!!
Sharon avisava, preste atenção nesse espaço entre os pensamentos. Esse vazio. Ah, esse vazio é mágico. Mas esse é assunto pra outro post.
Bom, numa desses noites de terça-feira eu vi um anúncio sobre a visita de Dalai Lama. Vi que o Tibet Center era o centro que havia organizado a visita. Fucei no website deles e descobri que aulas sobre budismo eram proferidas nas segundas-feiras. E lá fui eu.
Era uma segunda-feira de Fevereiro. Cheguei pouco antes das sete horas. A classe em que teríamos aula estava fechada e tive que esperar na porta com um grupo de desconhecidos. Aí chegou ele, o professor: Nick Vreeland. Fiquei surpreso, pois esperava um monge tibetano de olhinhos puxados. Mas Nick era diferente, claro, ocidental, elegante, magro, vestido como um monge. Me olhou diretamente nos olhos e se apresentou. Senti que mais que um olhar era uma análise que fazia. Nas aulas observei que suas explicações sempre foram diretas, bem american way... tudo muito lógico. Ao nos explicar algum conceito ou ensinamento budista ele terminava dizendo: vocês não devem acreditar cegamente nos ensinamentos. Sempre há que analisar, e se o pensamento ou ensinamento demonstrar-se correto e coerente sob análise, aí sim adotá-lo. Caso contrário, ignore-o, independente de quem o diga. Análise lógica é importante, nada é o que aparenta ser...
Aprendi com ele que é fundamental ir além da aparência. Ir além, totalmente além... Na vida, tudo é resultado de causas e condições. E os meus pensamentos e julgamentos vêm das minhas próprias experiências e atos. Concluo, então, que não tenho base sólida para julgar os outros e seus motivos sem uma profunda análise. Sei que no comportamento hostil há sofrimento, desejos, sonhos não realizados, frustrações, um entendimento do eu separado do outro, etc. Ao ver esse quadro, compaixão é a resposta que parece levar a resolução do problema.
E com tranquilidade me lembro que nada é permanente, que eu vou colher o que planto nesse momento, que estamos todos sofrendo, que no dia a dia muita vezes tomamos a ilusão dos nossos pensamentos, opiniões, julgamentos por realidade nos levando a tomar medidas equivocadas e que a vida é muito curta para perder tempo reclamando ou brigando com outros. Sem esquecer que na realidade o ganho nunca é definitivo e o mesmo é verdade para a perda.
Hoje estou em um estado novo, curioso de si mesmo, íntimo e pessoal a ponto de não poder descrevê-lo. É um estado de aprendizado profundo que vai além do racional. Uma experiência que há de vivê-la para entendê-la. Sei que não existo independentemente nesse mundo, estou no meio de uma teia que se liga a todas outras, que o bem e o mal não existem separadamente. Na realidade tudo é bem diferente do que parece aos nossos olhos. Pouco a pouco outros olhos vão se abrindo como o de um recém nascido e a realidade parece muito mais brilhante e interessante do que jamais foi.